sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Crônicas cotidianas... Ou o ladrão de poesias...


Uma tarde de sol numa rua paralela à rua do mar, lá ia Lôla dirigindo, tranquila, em direção a um tal de mini-sarau com adolescentes de algumas escolas públicas de um tal Estado. Apesar de alguma pressa,  o sinal vermelho a obrigou a parar e dar passagem aos pedestres. Ainda distraída, pensando em coisas do seu cotidiano, mas atenta no mudar das cores do semáforo, Lôla foi abruptamente acordada da sua introspecção com um enorme barulho, em frações de segundos se deu conta da janela quebrada no seu carro e imediatamente gritou. Tudo aconteceu tão ao mesmo tempo, que dificilmente se contaria os poucos milésimos de segundos entre uma ação e outra. O ladrão tinha que agir rápido: enfiou o braço com toda força e tocou na caixa que repousava no banco da frente do carro. Lôla gritou, ainda processando pouco o acontecimento: "-É apenas uma caixa! - São poesias!" Isso dito, não afetou o desejo do ladrão pela caixa, e que sejam poesias, o importante é o roubo !

A luz verde iluminou os olhos de Lôla, imediatamente ela deu partida no carro, o corpo do ladrão foi deixado para trás, mas a sua mão ainda ajudou a tampa da caixa a se aproveitar da situação e abri-se para derramar poesias por todo o carro, a janela aberta fez com que elas bailassem da frente ao fundo do veículo. Elas estavam livres, e poesias em liberdade ninguém segura. Quem mandou Lili trancá-las na caixa e colocá-las para passear com Lôla? Estavam, por força do roubo, soltas, eram palavras ao vento, farfalhantes e contentes, e na sua alegria de liberdade fizeram barulho o quanto puderam. Doces e peraltas as tais poesias, e ainda não estando na cena, eu poderia jurar que estavam felizes com o inesperado assalto. Foi a festa, festa das palavras e frases de métricas, rimas, sensações... Teria ficado alguma poesia nas mãos do ladrão?  Teria ele percebido o tamanho do seu roubo? Teria uma das poesias voado para fora e caído nas mãos de alguém que precisava ouvir certas palavras naquele momento? Teria o ladrão se encantado com a poesia que a sua mão sorteou? Estaria ele de mãos vazias? Ladrão que rouba poesia, quem diria? 

Chegando ao local do tal do sarau, uma Lôla ainda assustada e uma Lili preocupada, recolheram as safadinhas buliçosas e as encaixotaram de novo (para logo mais serem libertadas e declamadas pelos adolescentes). Eis uma de muitas verdades: poesia tem vontade própria e aí de quem as segure (ou tente deixá-las tranquilas nas caixas, mofadas em livros, trancadas em gavetas - Poesias não são tranquilas! Não se iludam com sua forma por vezes serena e doce, por vezes ingênua, no enviesamento das palavras, nas metáforas, nas metonímias... poesias são palavras intranquilas que querem ser lidas, compartilhadas, partidas, repetidas... querem estar vivas)

Mas a vida sempre retoma o seu trânsito normal: o mini-sarau chegou ao seu fim, Lôla devolveu a caixa de poesias de Lili, se recuperou do susto da invasão de seu veículo, consertou a janela do carro... Mas, dizem por aí, que algumas letras que se soltaram das poesias voadoras que descansavam na caixa colorida, passeiam sorrateiras e felizes pelo carro de Lôla à espera de alguém que as transformem em outras poesias...